A equipe responsável pela
secretaria do oitavo Encontro Nacional da Articulação do Semiárido Brasileiro (EnconAsa),
divulgou para os participantes do evento que aconteceu em Januária, Minas
Gerais, e para o público, a carta política que contém os pontos discutidos no
encontro, as avaliações realizadas e os pontos assumidos como compromissos para
dar seguimento ao projeto de desenvolvimento sustentável do Semiárido
brasileiro.
A Cáritas Diocesana de Amargosa
contou com representantes no evento que reuniu colaboradores de todos os
estados que vivenciam a realidade geográfica do semiárido. Na carta, também
encaminhada à Diocese de Amargosa, aspectos que interessam a todos de modo
geral e pontos específicos que merecerão a atenção da Cáritas em Amargosa.
Carta Política do VIII Encontro Nacional da Articulação Semiárido
Brasileiro (VIII EnconASA)
Trajetórias de luta, resistência e
conquistas para a superação da pobreza e construção da cidadaniano Semiárido.
Nós, 700
participantes do VIII EnconASA, agricultores e agricultoras familiares, povos
indígenas, população negra, representantes dos povos e comunidades tradicionais
–quilombolas, extrativistas, ribeirinhos(as), pescadores(as) artesanais,
geraizeiros(as), caatingueiros(as), vazanteiros(as), comunidades de fundo de
pasto,quebradeiras de coco – representantes de organizaçõesda sociedade
civilcom atuação no Semiárido, nos encontramos de 19 a23 de novembro de 2012,em
Januária –MG, para celebrar as nossas conquistas na construção do projeto de
desenvolvimento sustentável da região, fazer uma análise crítica do atual
modelo de desenvolvimento e definir orientações e estratégias para o futuro de
nossa ação.
I
- Celebrar nossas conquistas
O Semiárido vive
um importante movimento social de inovação para a convivência com a região. Uma
das conquistas mais visíveis se expressa nas mudanças observadas na paisagem
com a instalação de uma densa malha hídrica composta por mais de 600 mil
cisternas de placa. A democratização do acesso à água potável para mais de três
milhões de homens e mulheres, após séculos de exclusão, é o resultado de
trajetórias de luta e resistência e se materializa em conquistas na superação
da pobreza e a construção de cidadania.
O acesso à água
potável exerce papel determinante para a superação da miséria. Segundo a
Fiocruz, as famílias que possuem cisternas estão três vezes menos sujeitas aos
riscos de diarreia do que aquelas que ainda não a conquistaram. Isso explica em
grande medida a diminuição dos índices de mortalidade infantil verificados na
região na última década.
Há profundas
transformações nas formas com que as famílias agricultoras se reconhecem e são
reconhecidas. A participação direta no processo de implementação do programa, a
valorização de sua cultura e de suas capacidades vêm fortalecendo a autoestima
e autonomia, permitindo que as algemas da sujeição ao poder local, seja ele
econômico, social ou político, sejam rompidas.
Um diversificado
acervo de inovações está sendo produzido e disseminado com base na valorização
dos saberes acumulados pelas famílias e pelos povos e comunidades tradicionais.
A sistematização de experiências e a realização de intercâmbios horizontais
entre agricultoras e agricultores experimentadores vêm fortalecendo a
constituição de redes como espaço privilegiado para mobilização de novos
conhecimentos e práticas para a convivência com o Semiárido.
As mudanças
estruturais produzidas no Semiárido ganham um contorno ainda mais marcante
diante da seca que se instalou na região, considerada a mais severa dos últimos
40 anos. São as cisternas de placas que vêm servindo de suporte para o
abastecimento de água potável para milhões de pessoas em todo o Semiárido. A
segurança e soberania alimentar das famílias está sendo ampliada graças à rede
de infraestruturas de abastecimento de água para produção de alimentos,
estruturada pelo Programa Uma Terra e Duas Águas (P1+2), que dinamiza quintais produtivos,
criação de animal, roçados agroecológicos, práticas agroflorestais, manejo da
caatinga e o beneficiamento da produção. A maior evidência de sucesso dessa
ação está no fato de que, mesmo diante da severidade desta seca, muitas
famílias seguem comercializando sua produção nas feiras agroecológicas ou
entregando para o Programa de Aquisição de Alimentos (PAA)e o Programa Nacional
de Alimentação Escolar (PNAE).
São essas
experiências acumuladas na ação da Articulação Semiárido Brasileiro (ASA) que têm
aportado contribuições efetivas para o rompimento dos ciclos de reprodução da
pobreza e da miséria. Seus aportes conceituais e metodológicos se constituem
num dos alicerces importantes do“Água para Todos” do Plano Brasil Sem Miséria
do Governo Federal.
A amplitude e
consistência desta ação têm contribuído diretamente para a visão do Semiárido como
um lugar de fartura de natureza e de cultura popular, contrariando a visão de
uma região destinada à pobreza por conta de suas características ambientais. A
ASA afirma na prática que a convivência com o Semiáridos e faz por meio da
agroecologia que valoriza e articula os recursos naturais, a sabedoria e
criatividade do povo que vive e trabalha na região.
Iniciativas de
promoção da segurança e soberania alimentar, dos bancos e casas de sementes, de
educação contextualizada, de assessoria técnica, de auto-organização das
mulheres, de acesso à terra e aos territórios, dos fundos rotativos solidários,
da comunicação popular, de acesso aos mercados locais e de economia popular e
solidária ganham progressivamente qualidade, escala e unidade de ação em rede.
Eles apontam para um novo modelo de desenvolvimento para o Semiárido.
Estamos, no
Semiárido, diante de uma experiência singular de construção, implementação e
gestão de políticas públicas fundadas na participação direta e ativa da
sociedade. Os programas da ASA não teriam a amplitude e a relevância que
alcançaram sem a construção de parcerias com o Estado brasileiro, especialmente
com o Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome (MDS), Ministério
do Desenvolvimento Agrário (MDA), Ministério do Meio Ambiente (MMA) e Companhia
Nacional de Abastecimento(CONAB). Merece destaque o permanente apoio e
compromisso do Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (CONSEA).
Compartilhamos estas conquistas com todos os nossos parceiros públicos,
privados, organismos de cooperação, dentre tantos outros!
Reafirmamos que
estas conquistas são das famílias agricultoras, dos povos indígenas e das
comunidades tradicionais do Semiárido! São quilombolas, extrativistas,
ribeirinhos(as), pescadores(as) artesanais, geraizeiros(as), caatingueiros(as),
vazanteiros(as), comunidades de fundo de pasto, quebradeiras de coco, dentre
outras.
A ASA construiu
capacidade gerencial para gestão de recursos públicos de forma rigorosa e
transparente, fato que vem sendo unanimemente reconhecido pelos órgãos de
controle do Estado. Além disso, seu método de mobilização social para execução
das políticas públicas tem assegurado eficácia na alocação dos recursos do
Tesouro Nacional. Os resultados alcançados afirmam o papel determinante que a
sociedade civil pode e deve cumprir para a implementação de projetos de
desenvolvimento sustentável para todo o País. Isso significa que, para cumprir
sua missão,o Estado não pode preterir da participação forte a ativa das
organizações sociais na concepção, na execução e no monitoramento de políticas
públicas.
II
- Expressões de um outro Desenvolvimento
Celebrar
conquistas nos fortalece para enfrentar os grandes desafios que o momento
presente impõe, para garantir que as identidades do Semiárido superem as causas
da miséria social e devastação ambiental.
Somados aos históricos bloqueios estruturais, como a brutal concentração
de terras, as famílias, povos e comunidades do Semiárido enfrentam o
acirramento de disputas por seus territórios e pelos bens comuns da região.
Estes territórios de impressionante riqueza socioambiental, com suas caatingas,
cerrados, várzeas, rios e chapadas foram preservados ao longo do tempo pelos
povos que os habitam. Hoje são objeto de interesse de empresas mineradoras, do
carvo e jamento, dos monocultivos de eucalipto, dos grandes projetos de
irrigação, das barragens e grandes obras hídricas, a exemplo da Transposição do
Rio São Francisco. O avanço desses grandes empreendimentos, muitos deles
operados pelo capital internacional, tem o apoio político e financeiro do
Estado brasileiro e criam condições favoráveis para o desdobramento de
criminosos processos de grilagem e violação de direitos territoriais das
populações do Semiárido.
Assistimos no
VIII EnconASAo testemunho dramático de comunidades inteiras ameaçadas de
expulsão de suas terras na Chapada do Apodi, no Rio Grande do Norte, para que
cinco grandes empresas implementem,com infraestrutura e recursos públicos, um
grande projeto de irrigação. No Norte de Minas Gerais, que sediou o encontro, o
povo Xacriabá e populações tradicionais são expulsas e os cerrados são
devastados para a implementação de monocultivos de eucalipto. Estas são
situações emblemáticas de violação de direitos e são apenas exemplos de
situações que se repetem nos territórios do Semiárido. São muitos os registros
e testemunhos de violação de direitos, expulsão de famílias agricultoras, povos
e populações locais, e destruição ambiental.
A dura estiagem
que vivemos, mais do que apenas uma das cíclicas secas já conhecidas pelos povos
do Semiárido, evidencia o quanto os efeitos das mudanças climáticas já estão
colocados. Na região, esses efeitos podem ser devastadores.
Diante desse
contexto, o abandono da agenda da Reforma Agrária e regularização fundiária é
contraditório com o justo objetivo de superação da pobreza e da miséria.
Programas de distribuição em larga escala de uma única variedade de sementes e
a ameaça dos transgênicos produzem perdas de patrimônio genético conservado
pelas comunidades locais. A proposta do governo de ampliar as áreas de
irrigação sob o argumento de se constituir na grande alternativa para a
produção de alimentos e enfrentamento da seca na região reitera a lógica
concentradora de água e riqueza e contraria os avanços já conquistados na
convivência com o Semiárido. Seguir por este caminho é aprofundar as
desigualdades sociais e reeditar os velhos paradigmas da indústria da seca que
também se materializa na implantação das cisternas de plástico.
No âmbito das
relações do governo com as organizações da sociedade civil enfrentamos, a um
alto custo, a ausência de um marco regulatório, que traz como consequência a
criminalização e a diminuição de repasse de recursos. Organizações parceiras de
ações públicas se veem à mercê da insegurança jurídica em relação a convênios e
contratos, que as expõe de forma recorrente a compreensões enviesadas dos
órgãos de controle e a uma sistemática tentativa de deslegitimação de nossas ações
por parte da grande mídia. Sentimo-nos desrespeitados.
III
- Projetar nosso futuro
Depois de 13 anos
de construção coletiva, a ASA chega num momento em que a universalização do
acesso à água para o consumo humano está num horizonte muito próximo. O
Programa Um Milhão de Cisternas (P1MC) até então fora o carro-chefe das
principais ações dessa rede. Torna-se iminente a necessidade de construirmos
novas frentes nessa luta constante da convivência com o Semiárido.
Reafirmamos o
projeto político da ASA em contraposição ao projeto centralizador e hegemônico
do capitalismo e, neste contexto, buscamos fortalecer o protagonismo de
agricultores e agricultoras familiares, povos e comunidades tradicionais. Continuamos
apostando em soluções descentralizadas que atendam diretamente às famílias e as
comunidades do Semiárido brasileiro na perspectiva da garantia de seus direitos.
Mantemos o nosso
processo pedagógico na lógica da educação contextualizada, baseado na troca de
saberes e no intercâmbio das experiências, visando a capacitação das pessoas, a
formação da consciência crítica, o fortalecimento da mobilização social e a
construção de uma identidade em comum na diversidade dos povos do Semiárido.
Assim sendo,
apontamos os rumos por onde queremos continuar a nossa caminhada e os
compromissos que queremos assumir:
1. Mesmo com a
perspectiva iminente de universalização do acesso à água para o consumo humano,
entendemos que se faz necessário ampliar as ações do P1MC com a inclusão de
municípios que necessitam desse programa por apresentarem características
semelhantes de privação do acesso à água potável, porém estão fora do chamado
Semiárido legal.
2. É necessária
também uma vigilância permanente da sociedade civil sobre os recursos
repassados aos governos estaduais e outros parceiros do Governo Federal, para
que eles de fato cumpram o seu papel, realizem os investimentos e garantam o
abastecimento de água a toda a população.
3. Ao lado da
segurança hídrica, é preciso fortalecer as ações de segurança e soberania
alimentar e nutricional, investindo na diversificação da produção, nas diversas
formas de estocagem para alimentação humana e animal, na valorização da cultura
alimentar local, nos quintais produtivos, na criação de animais, manejo da
caatinga, beneficiamento de produtos, etc.,contribuindo para que as famílias
acessem as políticas públicas de inclusão produtiva, facilitando o acesso ao
crédito e à comercialização de alimentos via PAA, PNAE e outros. Esses
programas públicos são uma conquista dos últimos anos e precisam estar cada vez
mais consolidados e ao alcance da agricultura familiar camponesa, povos e
comunidades tradicionais e consumidores.
4. Reafirmamos a
importância de se implementar as ações propostas no ATLAS NORDESTE da Agência
Nacional de Águas para garantir o abastecimento de água potável das áreas
urbanas.
5. Nos marcos de
nossa ação, pretendemos fortalecer e ampliar o Programa Uma terra e Duas Águas
como ação determinante para seguir avançando na ampliação e diversificação das
infraestruturas hídricas voltadas ao atendimento de suas múltiplas demandas, na
produção de alimentos e no fortalecimento da assessoria técnica e
acompanhamentos voltados para a convivência com o Semiárido por meio da
perspectiva agroecológica.
6. Exigimos do
Estado brasileiro uma política de Assessoria Técnica e Extensão Rural (ATER) que
de fato fortaleça a agricultura familiar camponesa, que respeite as
características culturais e ambientais do Semiárido e tenha como eixo a
construção coletiva de conhecimentos baseada no papel das agricultoras e
agricultores experimentadores e na troca horizontal de conhecimentos.
7. Sementes
crioulas, sementes da paixão, sementes da gente, sementes da fartura, sementes
da resistência são alguns nomes com os quais foram batizadas as diversas
iniciativas de resgate, conservação e multiplicação das sementes nativas e
adaptadas no Semiárido. Esta é uma causa a ser abraçada pelo coletivo da ASA e
uma ação prioritária que deve ser objeto de diálogo com o Estado para a criação
de um programa a ser financiado e executado nos mesmos moldes do P1MC e P1+2.
8. Não podemos
ficar indiferentes às situações de violência que se impõem sobre as mulheres,
tendo, como pano de fundo, a divisão sexual do trabalho. Daí a necessidade de
retomar e fortalecer a auto-organização das mulheres, com vistas a contribuir
com o projeto político da ASA a partir de uma perspectiva feminista de
transformação da sociedade e de superação das desigualdades entre homens e
mulheres.
9. Da mesma
forma, não podemos ignorar a exclusão que sofrem os povos do Semiárido aos
diversos meios de comunicação, especialmente, às rádios e televisões
comunitárias, que funcionam como um instrumento de reafirmação da identidade e
de fortalecimento das lutas pelos seus direitos. Sonhamos com o dia em que
nosso povo exerça o seu direito de comunicar com a mesma autonomia, força e
resistência com que constroem sua história de convivência com o Semiárido.
10. Reiteramos
que a democratização do acesso à terra e a garantia dos direitos territoriais
das diversas populações e identidades do Semiárido é condição determinante para
o enfrentamento estrutural das desigualdades históricas que marcam a região.
Cobramos do governo da Presidenta Dilma Rousseff,coragem e determinação para
enfrentar os interesses das oligarquias e do agro e hidronegócio e realize uma
verdadeira reforma agrária e garanta efetivamente os direitos territoriais dos
povos e comunidades tradicionais direitos.
A ASA entende
que avançar nesse caminho só é possível na medida em que avançamos na
consolidação das relações entre a sociedade civil e o Estado. Neste contexto, exigimos
que a proposta de marco regulatório, já elaborada por uma comissão de poder
público e sociedade civil, seja enviada em caráter de urgência pela Presidenta
ao Congresso Nacional. Enquanto rede, vamos continuar investindo na mobilização
social e pressionando o Estado Brasileiro pela aprovação do marco regulatório
da sociedade civil sem o qual as organizações perderão gradativamente sua
capacidade de gestão de projetos com recursos públicos e continuarão
enfrentando processos de criminalização.
Todos esses
passos nos levarão – Estado e sociedade – à construção de uma POLÍTICA NACIONAL
DE CONVIVÊNCIA COM O SEMIÁRIDO.
O VIII EnconASA
nos reencanta, nos revigora e nos compromete cada vez mais a defender a Vida e
a dignidade das famílias, dos povos e das comunidades tradicionais do Semiárido
brasileiro.
É no Semiárido que
a vida pulsa! É no Semiárido que o povo resiste!
Januária/MG, 23 de
novembro de 2012.
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